Crónica de Alexandre Honrado
O digital próximo da religião
Discutíamos há poucos dias, em ambiente académico, a relação entre conectividade tecnológica e conexão cultural, estabelecendo-se então a dúvida: afinal a que estamos ligados?
Sem entrar nos domínios da reflexão, sempre motivadora de acalorados argumentos, do que será, afinal, em especial nos nossos dias, uma estrutura de crença e, nessa, que lugar ocupa o religioso no homem contemporâneo, demos com um exemplo que se nos afigura motivador, estimulante e a um mesmo tempo ligado ao tema que nos é proposto como alavanca de ensaio. O digital próximo da religião. Ao seu serviço, para sermos mais exatos.
Como atrevimento, dir-se-ia estarmos em presença de duas metáforas, já que produzem sentidos figurados por meio de comparações implícitas. A religião é uma metáfora de si porque é a procura em cada um e por cada um da divindade, admitindo-se de modo otimista que a divindade faça outro tanto: que procure, entre todos, aqueles em que possa crer. É definida – a religião – como um religar – , sendo-o forçadamente, endossando-se o latim religio, religionis: “culto, prática religiosa, cerimónia, lei divina, santidade”.
Pode ser ainda um erro de tradução para os que admitem a origem em relegere, isto é, “reler, revisitar, retomar o que estava distante”.
O digital, hoje associado a dispositivos de transmissão e ao mundo cibernético, é uma metáfora da palavra que o sintetiza: digital tem origem no latim digitus (palavra latina para dedo).
A curiosidade do discurso ocorreu-nos ao ler a edição de um boletim com o título “Religión Digital – información religiosa de España y el mundo”. (Trata-se de uma iniciativa da Fundación Foessa).
Não questionamos há muitos anos que a celebração de uma missa seja transmitida via rádio para todas as casas, coisa antiga com meio século ou mais, na atualidade com mais definição acústica por ser transmitida por processos digitais, nem que ao domingo a igreja católica entre em nossas casas pela televisão (num dos canais que até é estatal, reivindicando serviço público no seu estatuto não confessional) ou que em muitos países se vendam sofisticados relógios despertadores, cuja tecnologia é digital, que, à hora certa, chamam os fiéis para a oração na mesquita mais próxima ou no local onde se encontrarem – já que o culto não exige o local de culto: somos aquilo em que acreditamos e onde estamos estão as nossas crenças – e isso está para além de nós e do Outro mesmo que o Outro não nos entenda. Um relógio assim tem o feitio de uma mesquita e desperta à hora certa… com a voz gravada de um Aamuadem, almoadem, almuédão ou muezim, que é, no Islão, o encarregado de anunciar em voz alta, do alto das almádenas (ou minaretes), o momento das cinco preces diárias.
Não é surpresa encontrar excelentes grupos musicais – e melhores intérpretes – em coros religiosos. Nem é de espantar a qualidade dos seus materiais eletrónicos de apoio a essas atuações. Um dos espetáculos mais bem organizados, com as melhores vozes e os melhores equipamentos a que assistimos, foi da responsabilidade da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, também conhecida por igreja mórmon, que os cedeu para um evento universitário. Há tempos, assistimos ainda a um culto evangélico onde o pastor requeria aos fiéis que seguissem os cânticos pelo telemóvel, onde uma APP permitia a facilidade (e eventualmente a felicidade) de servir os crentes.
Uma reportagem numa revista portuguesa mostrava há poucos meses como a Igreja Universal do Reino de Deus tinha não só uma linha de apoio espiritual 24 horas por dia, como um terminal multibanco no altar, para que o dízimo não ficasse esquecido.
Não cabe aqui produzir qualquer juízo de valor. Apenas alinhar as ideias, os factos, e a manifestação de uma presença ausente – a espiritual, que coo qualquer presença ausente, se sente e impõe a quem a desfruta – diante da premência do material. O digital próximo (ou coincidente) à religião e com um carácter utilitário.
A comunicação de hoje é a admissão de códigos de sinais. O resultado dos seus sistemas de signos. Nada melhor do que a religião para interpretar valores convencionais e abstratos, utilizando símbolos, metáforas, hipérboles, metonímias – personificações que vão do homem e do ânimo ao ser inanimado (diríamos mesmo: do crente à cruz).
Alexandre Honrado
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